terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Instante _ Beto Canales

No exato momento em que colocou o pé na faixa branca sobre o asfalto quente e negro, ouviu o estampido e lembrou uma brincadeira que fazia quando criança, que basicamente consistia em fazer barulhos. Quem emitisse o som mais estranho que os outros da turma reconhecessem, seria o vencedor. As regras não eram rígidas e, por vezes, mudavam durante o próprio concurso. Tinha cerca de dez anos e esse seria o campeonato do final da temporada, pouco antes das férias, imperdível, portanto. Fez algo como um sapo engasgado em dia de chuva e venceu com folga o principal concorrente, que imitava um pedaço de fígado caindo no chão, que ninguém - pudera! - imaginou o que fosse. Ficou feliz e preparou-se para a segunda parte, imitando uma tradicional sirene de ambulância. Venceu também. A imitação foi perfeita, deixando sem chances a lambreta de corrida. A vitória encheu-o de orgulho, como no primeiro namoro, alguns anos depois, com uma menina linda, loira, de olhos claros com uma faísca permanentemente acesa, que o fizera apaixonarem-se brutalmente, fizera-o emagrecer e tremer, depois de beijá-la no quintal de casa. Aproximaram-se assim, naturalmente, e os lábios encontraram-se ainda secos e pálidos, permanecendo unidos até ficarem úmidos e vermelhos como sangue vivo. Saiu quieto, caminhando de costas, sem tirar os olhos da faísca e com as pernas trêmulas foi para casa escrever. E conheceu a poesia, sua própria poesia. Passava noites insones, nada naturais na sua idade, tentando expressar o que estava sentindo. Travava uma luta árdua com as palavras e normalmente não vencia. O amor era tão grande que parecia não haver palavras suficientes para expressá-lo, pensava sentir algo que ainda não existia, portanto, literalmente indescritível. Isso o levou a conhecer a poesia de outros e viu que não era bem assim. Recordou que aos vinte anos já possuía uma ampla biblioteca. O amor da adolescência ficara no passado e nesta época nutria outro amor: livros. E novamente era consumido, dessa vez por grandes autores. As noites tornaram-se curtas. Alimentava sua fome com muita literatura, arte, psicologia e principalmente filosofia. Lembrou-se da primeira aula, nervoso diante dos alunos quietos e surpresos frente a um professor jovem de roupas simples, talvez até demais, óculos tortos na face mal barbeada e cabelos confusos. Escreveu a palavra "filosofia" no quadro negro e disse que se ao final do ano um só aluno concordasse com sua idéia de que todo governo, de qualquer nação, deveria ter um filósofo no primeiro escalão, sua vida de professor estaria recompensada. Então se lembrou da política, que trouxera bons amigos e alguns desafetos, dos intermináveis discursos que fazia das conversas polemizadas em bares junto a um copo sempre vazio, das idéias mirabolantes que defendia com argumentos e teorias feitas na hora, protegidas com gritos e batidas de punhos na mesa. Isso faz com que lembre outra paixão, também com faísca nos olhos azuis, sentada no outro lado da mesma mesa, somente esperando o amadurecimento enfim, chegar. Lembrou o começo do namoro, as afinidades, o isolamento em que ficaram por alguns meses, tempos de planos e sonhos, tempos de união, de conversas intermináveis sobre qualquer coisa, desde a importância da cibernética para o desenvolvimento da humanidade até qual o ponto ideal de cozimento do brócolis, a luta diária por espaço e qualidade de vida, o aconchego em noites frias na cama e, claro, o casamento. O terno simples e negro, pesado, o vestido branco e leve. Lembrou-se de cada detalhe, dos amigos reunidos festejando, felizes e risonhos, ao contrário do nascimento do filho, poucos meses depois, quando sofrera muito com os riscos do parto. Chega a ouvir novamente o grito livre e esganiçado do menino, que cessou diante da sua voz branda. Lembrou o primeiro sorriso da criança, quando chorou vertiginosamente de emoção, a boca abrindo-se lentamente e emitindo um som de graça, os braços agitando-se, as primeiras palavras e passos, os tombos e os machucados, a vermelhidão dos joelhos ralados, os abraços e beijos, a primeira ida à escola, as brincadeiras inocentes, as conversas longas e saudáveis que tinham seguidamente. O que o levou a acreditar que tinha algo a mostrar, a ensinar além do magistério, além da sala de aula, e que talvez tivesse chegado a hora de escrever seu livro, realizando o sonho que nutria desde a adolescência. Lembrou-se das novas noites insones, das pesquisas, do apoio da esposa e do filho, de todo o conhecimento que adquirira e tentava transmitir, das teorias que então compunha demoradamente, das mudanças em praticamente tudo o que pensava da evolução como homem, como pensador, de seus textos, da dificuldade em colocá-los dentro de uma ordem razoável e lembrou-se do dia de ontem, quando finalmente recebeu uma ligação da editora convidando-o para assinar o contrato de publicação do livro e da comemoração com a família, dos "olhos de faísca" orgulhosa do marido, do filho encarando-o como um super-herói sem músculos, dos amigos felizes com o sucesso, e dele mesmo, sentindo-se completo, realizado. Lembrou-se de alguns minutos atrás quando saiu de casa com beijos em cada bochecha para ir à editora, do homenzinho verde permitindo-o ir em frente, de olhar para o chão e ver a faixa branca sobre o asfalto quente e negro, e não lembrou mais nada e nem ouviu mais o estampido. A bala perdida dilacerou seu cérebro, sua vida. Rasgou seu legado. O vermelho escondeu a faixa branca sobre o negro.

Fonte: http://www.blocosonline.com.br/literatura/prosa/ct/conptxt.htm

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